Luiz Carlos Merten - O Estadao de S.Paulo
Elas se lembram com saudade, não propriamente nostalgia, dos áureos tempos da
Rádio Nacional. "Apesar do glamour, éramos funcionárias da rádio, que era uma
autarquia. Tínhamos de bater ponto e seguíamos a escalação dos programas, como
uma ordem do dia. Mas, na hora de cantar, íamos de gala, tínhamos roupas
maravilhosas, não era como hoje, quando os artistas fazem show de roupa rasgada
e vira moda." Carmélia Alves, Carminha Mascarenhas e a caçula do grupo - "A
nossa menina" -, Ellen de Lima. Há mais de 20 anos Carmélia e Ellen voltaram à
estrada, fazendo shows. A partir de 1988, As Eternas Cantoras do Rádio virou um
hit no palco e em CD. Carminha integrou-se ao grupo há oito anos, substituindo
Nora Ney. As três estão no documentário Cantoras do Rádio, de Gil Barone e
Marcos Avellar, que estreou ontem. Há uma quarta cantora no filme, mas Violeta
Cavalcanti, vítima de Alzheimer, já não canta mais.
Cada uma representa um estilo. Carmélia, o baião; Carminha, com sua voz de
contralto, a fossa; e Ellen, com sua habilidade de soprano, não se fixa em um
estilo nem gênero, mas tem liberdade para cantar todos os clássicos. Violeta,
ausente neste encontro que se realiza na chuvosa tarde de quarta-feira, num
hotel dos Jardins, tinha - tem - o samba no corpo, e na voz. O repórter comenta
o atual boom dos documentários musicais. Fala de Um Homem de Moral, de Ricardo
Dias, sobre Paulo Vanzolini - Carmélia Alves dispara a cantar, "Não fica no
chão/Nem espera que mulher/lhe venha dar a mão..." O repórter insiste, faz a
pergunta tola, se elas conhecem Ronda? Como? "Ronda é um clássico!" É a vez de
Ellen cantarolar.
Uma carioca (Carmélia), outra mineira (Carminha), a terceira, baiana
(baianíssima!, Ellen). Representam a própria brasilidade. Todas reinaram na
Nacional, a rádio mais poderosa do Brasil - do mundo! -, que dividia suas
cantoras em três plantéis. Havia um primeiro time inatingível, as divinas; um
meio de campo, no qual estavam; e o terceiro time, formado por cantoras que iam
parar na Rádio Nacional por indicação de políticos - era uma autarquia, não se
esqueçam. A rádio ficava na lendária Praça Mauá, no Centro do Rio. Todas tiveram
forte ligação com São Paulo. Carmélia foi casada - durante 54 anos - com o
paulista Jimmy Lester, que cantava em inglês. Em 1998 ele morreu em Teresópolis,
no Estado do Rio, e ela o trouxe para ser enterrado em São Paulo. Nesta semana,
por conta da agenda de lançamento de Cantoras do Rádio na cidade, Carmélia
circulou bastante por Sampa. Ao passar pelo cemitério, teve uma coisa. A saudade
bateu forte.
Carminha e Ellen têm outra ligação com São Paulo. Como crooners, revezavam-se
na boate Oásis. Cada vez que a temporada de algum artista não caía no agrado do
público, o dono, desesperado, chamava Carminha ou Ellen no Rio e elas vinham
salvar a pátria. Falam todas ao mesmo tempo. Cada uma tem sua história para
contar. Carmélia Alves arregala o olho e pergunta - "Você sabia que sou uma
assassina?" Lembra do sujeito que assistia a um show numa boate e que disse:
"Carmélia, você me mata com seus baiões!" e morreu de verdade, fulminado por um
ataque. A história, contada agora, é tragicômica, mas foi um horror. Carmélia
tinha um título e sempre foi o de ?rainha do baião?, mesmo quando era crooner da
boate do Copacabana Palace, frequentada pela nata do café soçaite. O repórter
diz que viu o documentário sobre o parceiro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira,
O Homem Que Engarrafava Nuvens. E...? "O filme é muito legal, tem vários números
seus." Carmélia só cantava Humberto Teixeira ou tinha uma ligação mais calorosa
com ele? "O Humberto foi um dos fundadores, com o Jimmy, do Clube da Chave, em
Copacabana. Era um irmão!"
Ellen passou pelo Clube do Guri, na Rádio Mauá, pelo programa de calouros de
César de Alencar e também pelo famoso Papel Carbono, de Renato Murce, quando
passou no teste imitando a diva Heleninha Costa. Tornou-se conhecida do público
por ser a intérprete da célebre Canção das Misses, escrita por Lourival Faissal,
para servir de tema do tradicional concurso de Miss Brasil. De todas as cantoras
- as rainhas - do rádio, foi a única que teve uma experiência como teleatriz (na
Globo), contracenando - acreditem! - com Fernando Montenegro e Sergio Britto.
Carminha veio de Belo Horizonte, convidada por um descobridor de talentos que a
deixou na mão, mas o lendário Heron Domingues a ouviu cantar e o resto é
história. Carminha foi parar no elenco da Rádio Nacional. Seu filho, o
saxofonista Raul Mascarenhas Jr., casou-se com Fafá de Belém. Tiveram a filha
Mariana. Carminha fala na neta, também cantora, que incorporou o repertório das
divas do rádio.
Todas passaram pelas chanchadas da Atlântida, fingindo que cantavam na tela.
"O disco tocava numa vitrola e, às vezes, a agulha emperrava", lembra Carmélia.
Cantoras do Rádio é outra coisa. Outra fase da carreira delas, outra fase do
próprio cinema brasileiro. O filme é uma apaixonada declaração de amor às
eternas cantoras do rádio. Onde vão, há um numeroso público de terceira idade,
mas existem também os jovens, que cantam com elas e as reverenciam. É por isso
que, quando falam da Rádio Nacional, sentem saudade, mas não tristeza. A vida
tem muitas fases e a atual está sendo boa. Carminha Mascarenhas, aos 79 anos,
está na fase de se desfazer de muita tralha que acumulou ao longo de sua
carreira. Pelo sotaque, ela percebe que o repórter é gaúcho. "Quer o meu
Laçador?" Carminha ganhou o troféu de prata cantando Lupicínio Rodrigues. Havia
um belo dueto sobre o compositor em Cantoras do Rádio. Carminha e Ellen cantando
o rei da dor de cotovelo. Os direitos são caros e o número, como muitos outros,
foi cortado. Mas elas cantarolam trechos de Vingança e é um privilégio para o
repórter.